terça-feira, 28 de janeiro de 2014

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Ex abrupto


O Calango tinha despirocado de vez. Tinha perdido a conta de quantas vezes tinha dito aquilo. Tinha prevenido até a Gabi. Mas “não, ele era muito exagerado”. Estava “puta passando mal”. Agora, quem ia lá verificar se ele tinha surtado ou se estava vivo hoje? Não atendia o telefone de jeito nenhum. Porra, Calango. Aquela calça já não entrava mais nele. Tinha que diminuir a cerveja. Ou poderia diminuir os petiscos. Como todo mundo podia ter achado normal uma pessoa ficar enfurnada em casa três meses seguidos? Se é que ficou. Ninguém se deu ao trabalho de saber. O cara tinha largado o emprego e passado a trabalhar online nesse treco de webdesign, somente para ganhar o suficiente pra continuar adquirindo café, cigarros, maconha e pizza no delivery em quantidades suficientes para sobreviver. Alguém tinha que interditar aquela profissão de webdesign, que permite a um cara esquisito ganhar dinheiro suficiente para viver à parte da sociedade, só na base de entrega a domicílio. E interditado o Calango, especialmente. Que só assistia seriados baixados na internet toda noite, a noite toda.

Alguns chegaram a visitar o cara. Só no início, é claro. Depois, todo mundo sumiu. Quando ele aparecia, o Calango ficava lá, olhando pro lado, assistindo televisão e falando umas paradas sem sentido. O cara estava pirando, mas sempre na maior calma. Queria sair? Não. Tinha uma temporada nova de um seriado norte-americano qualquer pra assistir. Queria ir ao cinema? Não. Tinha trampo. Bar? Não. Nada. O cara até arrumou o telefone de um lugar que entregava cigarros em casa. E todo mundo achando tudo aquilo muito normal. Alguém devia era pegar a lista com os nomes dos caras que pedem para entregar cigarro na casa deles e mandar para alguma instituição psiquiátrica. Para fazer um tratamento preventivo. Mas sempre que ele comentava, era um “pô, Roneba, deixa o cara” ou um “deixa de viajar”. Era o mesmo papinho da ex dele. “Não é que você esteja super trabalhando, meu querido”. Caralho. O cara estava definhando e ninguém achava esquisito.

Ele precisava ligar imediatamente o computador. Sua cabeça estava quase explodindo. Não fazia muito sentido ter acordado ali na cama dele (travesseiro com fedor de cigarro) depois daquilo. Gosto ruim na boca (de cigarro na língua e na gengiva), uma caca nas mãos (cheiro de tabaco e de nicotina). Parecia que havia sonhado com uma mulher afogada. Ou atropelada. Era tipo uma ressaca sem que tivesse rolado álcool na noite anterior. Será que aquela história da ex do Calango era verdade? Mas aí ele não teria ficado em casa aquela noite. O computador lento de tão abarrotado de músicas e filmes e livros que ele não escutava nem via nem lia. Cheiro de pasta de dente na boca de manhã era bom. Ele podia agora cuspir o nojo e a angústia. Tinha de tomar banho naquele banheiro onde deveria haver uma placa avisando: “inapropriado para visitas”. Inapropriado até para o morador. No entanto, depois do café da manhã, viraria outra pessoa. A cachola com ideias mais claras. Precisava de café.

Mas não tinha café na casa. E não existia nada pior do que nescafé. Ou, pensando bem, pior do que nescafé, por si só, era tomar o resto do pó do nescafé que a ex-qualquer-coisa tinha deixado na casa dele uns 9 meses antes. A escrota tinha ido embora, já estava namorando de novo, e ele continuava com o pó de nescafé dela no armário da cozinha (além de duas blusas misturadas com suas cuecas, na gaveta de cima do guarda-roupa, dos produtos de maquiagem espalhados pelo banheiro inabilitado há meses para visitas – e para moradores - e do cheiro dela, que impregnava a casa inteira). Nescafé era uma porcaria, mas ele ia tomar porque precisava de café, embora aquilo não pudesse ser considerado café. E aquela porcaria nem despertava ninguém. Ainda por cima um nescafé com o cheiro da Aline. Lembrou da sua viagem pro Chile. Lá, ele tinha que pedir “café café”. “Café”, pura e simples, era nescafé, pura e simples, por mais incrível por possa parecer. Nescafé. Como uma nação inteira podia achar que nescafé poderia ser equivalente a café? E ainda tinha os Estados Unidos. Se brincar, o café americano do Starbucks era ainda pior que nescafé. Ele tinha discutido isso com a ex-qualquer-coisa (ele falava assim, às vezes, e às vezes até pensava assim, mas sempre se lembrava que a ex era a Aline: a não-mais-sua Aline) várias vezes. Saudade da máquina de espresso. Ele deveria ter ficado com ela. A Aline tinha levado tudo o que havia de melhor na casa, mas tinha largado o nescafé. Que deixa esse gosto desgraçado na boca. Na hora do vamos-ver, de dividir as coisas, não ouviu defesa alguma do nescafé. E esse barulho insistente? Cadê aquele celular (nove chamadas não atendidas), que não parava de tocar? O celular, claro, estava entre as almofadas do sofá furado e inapropriado para visitas onde ele havia dormido.

- Alô! Quem? Ah, fala, Batata. Putz... Sério? Caralho... Puta que pariu... Então é isso mesmo... Estirada na rua? Eu ainda não estava certo dessa parada desde que eu acordei... Foi. Agorinha. Pode crer... Agora tô aqui lembrando: tentei falar com ele de madrugada, mas ninguém atendia. Mas o Calango também não atende o telefone de ninguém já faz uns dois meses. Será? Cara, tenho medo de especular. Não tô sabendo de nada. Mas também não duvido. Vou me arrumar por aqui e vou dar uma chegada na casa dele. Tá por dentro de algo sobre a família dele? Alguém chegou por aqui? Se ele tem algo a ver com isso? Você acha? Puta merda. Ele disse isso? Não, não sei. Não sei de nada. Eu vou lá agora mesmo, bicho. Melhor eu checar o cara. Falou.

Precisava dar uma olhada no computador. A notícia estava disseminada. Coitada da Luiza. Era tão linda. Não que fosse pior por ela ter sido tão linda. Mas ela era. Linda, digo. Coitada. Às vezes, era meio convencida, mas até que era gente boa. E linda, além do mais. Largada no meio da rua, daquele jeito horrível... A Elis havia dito que tinha acontecido no início da subida da avenida Humaitá. Mais ou menos à 1h da manhã. Todo o pacote da morte de jovem do sexo feminino em uma avenida deserta no meio da madrugada. E já haviam começado as correntes: as de ódio aos criminosos e as de pensamentos positivos para a alma da Luiza e para a família e para os amigos. Ele odiava correntes. Alguns já estavam postando teorias e insinuações sobre o Calango. Mais uns minutos e começaria o linchamento moral. Filhos da puta. Tinha que sair, mas não queria dar de cara com ninguém no ônibus. Resolveu encher os pneus da bicicleta que ele não usava havia dois anos.

Saiu para a rua meio ansioso, mas com um único desejo imediato: não encontrar ninguém conhecido. Poderia até mesmo cruzar com o assassino da noite anterior. Isso não lhe traria, afinal, nenhuma angústia. As caras são, afinal, sempre as mesmas. Ouvia o barulho incessante das buzinas. Ele poderia, talvez, cruzar com uma namorada antiga (desde que não fosse a escrota da Aline). Não veria sequer uma marca, provavelmente sequer uma lembrança, de que ela já tivesse lhe dado um beijo algum dia. Percebeu uma velha com um cachorro, na calçada. Estava lá, agora, passeando calmamente com o cachorro cagando pela calçada inteira, enquanto o marido estaria tendo um ataque fulminante do coração. Seria bom ver um acidente. Poderia tirar sua cabeça daquilo. No dia anterior, tinha morrido um ciclista, atropelado. Mas nem repercutiu. “Acidente”. Mas o negócio da Luiza seria diferente. Não tinha sido“acidente”. E ela era jovem. E linda. E até gente boa, na opinião de alguns. Mas, acima de tudo, ela era rica. Alguém ia se ferrar. Chegara a seu destino. Um prédio velho, com cor de lata de lixo velha. Como faria ele pra subir com a bicicleta naquele prédio sem elevador?

Três lances de escada. O porteiro tinha dito que ele estava. Mas ninguém atendia. Ele ia ter que descer as escadas. Merda.

- O Carlos não está atendendo a porta. Toquei a campainha várias vezes. Bati na porta. Esperei uns 10 minutos, e nada. Certeza que ele está no apartamento?

- Vou falar uma coisa pro senhor. Certeza que ele está aí. Ele entrou faz pouco tempo. Pode ser que esteja dormindo. Passou a madrugada inteira fora. Vou falar pro senhor porque sei que o senhor é amigo dele. Mas a polícia veio aqui perguntando por ele e levou ele pra delegacia. Foi o porteiro do turno anterior que me contou. Depois eu fiquei sabendo do negócio da namorada dele. Era uma moça bonita que só, mas nunca mais tinha visto ela aqui no prédio. A notícia está se espalhando rápido. Tem morador aqui que está com medo. O senhor sabe se saiu mais alguma coisa na televisão? Veio uma mulher aqui perguntando por ele, parecia jornalista, mas eu achei que era melhor não dizer coisa nenhuma. Vai que. Mas ele está lá, sim. Ele voltou faz umas 2 horas. Eu posso interfonar lá pro senhor.  

O típico porteiro fofoqueiro. Conta tudo pra todo mundo e diz que só está comentando aquilo com você. Ele deve estar com medo. Ninguém entende uma coisa dessas. Mas todo mundo começa a julgar imediatamente. E todo mundo adoraria dar uma opinião e aparecer no jornal.

- Se você puder interfonar...

- É... Senhor Carlos? O seu amigo, o Ronaldo (é este o seu nome, né?), está aqui embaixo... - O porteiro, então, olha pra mim, com uma cara interrogativa, quase de súplica, e diz com a cara enrugada: – O seu Carlos disse que o senhor pode subir.

Subiu de novo e viu a porta semiaberta. Depois que entrou no apartamento, o Calango, sem dizer nada, assomou com uma cara de quem não dormia havia um mês. Deu um “oi, cara”, olhou para os dois lados do corredor depois que ele entrou na sala, e fechou a porta a chave. O apartamento estava encoberto de fumaça de cigarro. O cheiro era de incenso misturado com tabaco. Que lixo. Estava ainda pior que o apartamento inapropriado dele. Aquele apartamento não via uma faxina havia pelo menos seis meses, a julgar pelo aspecto dos restos de comida sobre a pia da cozinha. A televisão, como sempre, estava ligada. Perguntou como ele estava.

- Você viu o que aconteceu? Todo mundo já sabe? No jornal? É... Eu estava aqui, de boa, quando me interfonaram dizendo que a polícia estava lá embaixo querendo subir pra falar comigo. Pra você ver como eu estava por fora de tudo, a primeira coisa que eu fiz foi apagar o baseado que estava meio aceso na mesinha de centro e jogar fora toda a maconha que eu tinha aqui em casa pela privada. Enquanto eu puxava a descarga, já tinham começado a bater forte na porta, mandando eu abrir. Depois de entrar, os dois guardas começaram a gritar comigo, perguntando o que eu tinha feito nas horas anteriores. Mal comecei a falar, eles me perguntaram da Luiza. Surtei. Não tinha sacado porra nenhuma. Me fizeram umas perguntas sobre facas, sobre estupro, e já me deram logo uns 3 tapas bem fortes na cara, me levaram pro corredor do prédio e revistaram todas as minhas coisas. Sem mandado, sem porra nenhuma. Depois de uns 15 minutos, me levaram pra delegacia. Fiquei praticamente a noite inteira lá. De passagem, vi o irmão da Luiza, estava com a cara inchada, conversando com outros policiais. Mas foi tudo muito rápido. Depois, me interrogaram por horas. Perguntavam sempre as mesmas coisas, várias vezes. Eu não tinha nenhum álibi. Insistiram muito na escada de incêndio. Como o porteiro disse que não tinha me visto saindo, concluíram que a única maneira de eu ter deixado e entrado de volta no prédio seria por ali.

O Calango gostava de usar aquela saída por fora quando ia comprar cerveja ou cigarros no meio da noite. Para evitar algum vizinho que pudesse estar puto com o barulho da música e da conversa alta. Às vezes, era até exagerada a frequência com que usava uma escada de incêndio cujo estado era, pra dizer o mínimo, precário. Mas não era horar de fazer nenhum comentário. Era tudo muito desconfortável. Não sabia se devia dizer algo. E o Calango desse jeito maluco beleza dele, acendendo e apagando o mesmo cigarro várias vezes, até resolver continuar a história.

- Ainda não consigo acreditar que a Luiza tenha morrido. Isso só ficou claro pra mim depois de muito tempo na delegacia. Eu continuava com a cabeça no lance do baseado, dos vizinhos, sei lá. Até que me veio, tipo assim como uma martelada na cabeça. Eu não consigo deixar de pensar como ficava o tempo todo pensando que minha vida poderia estar bem melhor se ela nunca tivesse existido, ou se eu nunca a tivesse conhecido. E eis que. Me sinto culpado. É como se tivesse acontecido algo que eu estivesse desejando loucamente por meses. Foi a primeira coisa que passou pela minha cabeça. Depois de ter pensado isso, me desesperei. Vi que nunca mais poderia ver a Luiza na vida. Eu ainda pensava bastante nela. Gostava muito, só que ao contrário, entende. Foda. Ela era... – ele senta no sofá manchado por diversas cascas de comida e com alguns rasgos, como se ali morasse um gato invisível – ...ela era linda. Sei que todo mundo acha que eu ainda não tinha conseguido superar o fim do relacionamento. Mas eu estava de boa aqui. Um maluco recém-solteiro, em geral, vai a todas as festas, bebe mais do que devia e passa a vida entre a bebedeira e a ressaca, ficando com todas as pessoas que vê na frente. Como eu não fiz isso, pensam que enlouqueci. Louco é quem pensava que eu estava dando pala aqui.

Enquanto ouvia os devaneios do Calango, achou melhor fumar outro cigarro (a história de fumar tinha definitivamente ido pro pau). Mencionou que alguns amigos dele (não ele, é claro) poderiam estar bolados com ele, talvez de forma exagerada. Mas que era para o bem dele.

- Enquanto eu estava na delegacia, só queria ir embora. Depois que saí, saquei que o pior ainda estava por vir. Meu celular estava abarrotado de mensagens me xingando de filho da puta pra pior. Você não tem ideia de como estava meu perfil do facebook, que eu já deletei. Uma carta anônima cheia de ameaças foi passada por baixo da porta do meu apartamento. Nem sei como o cara entrou no prédio. Eu já sou culpado para todo mundo. Eu estava na viagem de ir ao enterro dela, mas agora estou certo de que seria linchado se aparecesse por lá. Estou com medo de que algum morador venha até aqui pra me matar. O pior é que eu entendo essa parada. É muita dor. Só espero que esse sofrimento todo não se transforme em ódio contra mim. Engraçado como as expectativas da gente mudam rápido. Eu queria ser acolhido pela família dela, e agora só espero que não me matem. Até ontem, eu tinha vontade de ficar mais sozinho. Agora, isso não é mais questão de escolha: eu estou irremediavelmente sozinho. Não tenho ninguém. Você foi o único que falou comigo, além dos meus pais. Estão providenciando um advogado. Ainda bem que, de tanto ter ficado em casa, elaborei um esquema que me permite quase não sair pra manter uma parada básica de sobrevivência. Peço quase tudo via internet ou pelo telefone. Te contei que eu descolei o telefone de um serviço de entrega de cigarros? Acho que vou perder todos os freelas que tinha arrumado. Vou ver se pego emprestado algum dinheiro com meus pais. Enfim, rodei.

Decide acender outro cigarro. O Calango fuma um atrás do outro. Mantém os olhos para baixo, como se estivesse procurando alguma coisa naquele chão imundo. Então, começa a tossir para limpar a garganta.

- Você não tem ideia. Pelas mensagens que recebi, as pessoas estão convencidas de que a Luiza foi estuprada. Só que, depois de horas de interrogatório, um policial deixou escapar que não havia evidência alguma de violação. Mas, para todo mundo, eu sou assassino e estuprador. Você acha que isso vai mudar? Eu duvido. Se disserem que não houve estupro, vão dizer que eu subornei a polícia. Se nunca descobrirem quem a matou, vão sempre apontar para mim como o escroto que conseguiu enganar todo mundo. Eu já me ferrei, de qualquer maneira. E pior que ainda me sinto mal por reclamar. Quem se ferrou de verdade foi a Luiza, que não merecia aquilo. E a família dela. Houve um momento em que os policiais quiseram me mostrar o corpo dela. Eu me recusei a ver. Depois de ter saído da delegacia, fiquei pensando no cadáver dela. A imagem está encravada no meu cérebro. É uma punição. Eu desejava secretamente que ela não existisse mais, e agora que ela morreu, eu tenho que sofrer as consequências por ter sonhado tanto com isso. Faz sentido.

Não fazia nenhum sentido. Ele estava surtado. O que ele mais desejava naquele momento era que o avião com os pais do Calango pousasse na cidade nos próximos minutos e tentasse conter aquela bomba relógio. Vai que ele tentasse o suicídio, por exemplo. Ou que fizesse uma confissão sem ter cometido o crime. Tinha ânsia de retirar todos os objetos cortantes daquele apartamento. O caos, no entanto, era espantoso. Era preciso encontrar uma faxineira antes mesmo de contratar um advogado. E aquele monte de lorotas que ele estava falando ali. Ou ele era um completo idiota, ou estava mentindo descaradamente sobre essa história de dizer que tinha superado a história com a Luiza. Era o único que não percebia o óbvio. Tinha medo de deixá-lo sozinho com a cabeça pirada daquela maneira. Por outro lado, tinha medo também de ficar sozinho com ele e ficar com a cabeça pirada daquela maneira. Precisava sair para pensar um pouco. Aquele ambiente estava irrespirável. Inventa uma desculpa, de que os pais dele estavam esperando-o em casa, e se despede do Calango. Ele diz “beleza”, e abre a porta. Enquanto percorre o corredor do condomínio, percebe que o Calango confere novamente os dois lados do corredor, antes de trancar a porta do apartamento.

O Calango usava aquela escada de incêndio todo o tempo. Estava se sentindo culpado demais. Tão culpado que aquilo podia ser indicativo de algo. E se ele de fato tivesse surtado e matado a Luiza? E se ele nem se lembrasse de ter feito isso? Ou, pior, e se ele fingisse estar surtado para poder sair impune? Mas ele não tinha conversado nada direito com ele. Tinha permanecido lá, só ouvindo, com cara de retardado.

E pensar que, ainda há poucos meses, costumavam sair “de casal”. Calango com a Luiza, ele com a Aline. A Luiza, claro, com sua atitude ligeiramente superior, mas disfarçada de “pessoa-que-gosta-de-passar-umas-dicas-legais”. E a Aline com sua mania de nunca deixar passar nenhuma fala que pudesse ser um ataque disfarçado a ela, o que basicamente era qualquer coisa que a Luiza falasse. Não era à toa que ele rapidamente se acostumara a estar sem a Aline. Menos aos domingos. Ela aparecia com uns filmes surpreendentes. Ele não poderia, por exemplo, divulgar sua lista de filmes preferidos porque ela certamente veria e comentaria algo do tipo “fui eu que mostrei todos pra você”. Ela era insuportável. Não entendia como podia ter durado tanto tempo. Mas já quase não pensava mais nela. Não estava como o Calango, fumando baseados e assistindo seriados enlatados, com a barba por fazer, eternamente em casa. Não. Estava socializando em bares, em festas, em todo lugar. Uma vida saudável. O número de contatos de sua agenda era 60% maior que três meses antes. Ela, como era de se esperar, começou a namorar logo depois. Ele nem ligou. Ele não sentia saudades. Não sentia saudade alguma. Talvez, quem sabe, um domingo ou outro. Se a Aline morresse, subitamente, ele não passaria por um colapso mental. Definitivamente, não seria o principal suspeito do crime. Este papel agora caberia ao novo namorado. Ele estava livre.

A não ser que todo mundo achasse dele o que pensavam do Calango. Que ele não tivesse superado a relação com a ex-qualquer-coisa. Seria possível? Ele definitivamente não estava despirocado como o Calango. Definitivamente não pensava mais na Aline. Definitivamente, não. Mas, e os outros? Era possível que todos achassem que ele era o único a não enxergar o óbvio? Não... Nada a ver. Nada. Não tinha nada a ver pensar naquilo. Tem que pensa agora no Calango. E no caso da Luiza. O caso da Luiza era mais importante agora.

Mas não podia fazer nada com relação à morte da Luiza. Tinha acabado de falar com o Calango. Amanhã, voltaria à casa dele, para ver se a família havia chegado. E para ver se ele colocaria o parafuso de volta. Naquele exato momento, porém, estava em frente a casa da Aline (Aline, não: ex-qualquer-coisa). Não custava nada interfonar. Afinal, mostraria a ela e a todos que poderia perfeitamente ser amigo daquela menina que levara a máquina de espresso mas deixara o nescafé. Precisava mostrar a todo o mundo. E a ela, especialmente. Estava decidido. Ele deixou a bicicleta acorrentada no poste habitual, tentou remover um pouco do cheiro de tabaco da roupa, comprou um chiclete no quiosque do Chico (“há quanto tempo, Roneba!”) para tirar o bafo, sentou-se por cinco minutos nos degraus da escada na entrada do edifício. Após certa hesitação, apertou o botão do interfone do apartamento 304. E começou a suar e tremer. Não esperava isso. Certamente, era por medo do gênio dela. Por isso. Não sentia saudade alguma dela.

Ela atendeu o interfone. Depois de perguntar duas vezes quem era e reconhecer a sua voz, perguntou se ele queria subir. Ele disse: “quero, sim”, de uma maneira bem tranquila, descompromissada. Enquanto esperava o elevador, perguntou-se várias vezes se deveria estar ali. Mas convenceu-se de que havia tomado uma excelente decisão. Não podia deixar que acontecesse com ele o que havia ocorrido com o Calango. O que ele se dizia, enquanto o elevador subia, era que, com ele, seria diferente. Logo, ela precisava saber, por ele, que tudo estava perfeitamente bem. Era melhor dar só uma olhadinha no espelho e praticar antes de tocar a campainha: “Olá, Aline! Tudo certinho?”

terça-feira, 7 de maio de 2013

Lapso



 
Estou tentando correr o máximo que posso. Sei que, se parar, alguma coisa muito ruim vai acontecer. Algo horrível. Estou me cansando, no entanto acelero cada vez mais. Alguém está atrás de mim. Eu o vejo sem necessidade de olhar para trás. Está perto. Cada vez mais perto. Tem a cara contorcida. Parece furioso. Parece a personificação da maldade. O que eu fiz? Certamente fiz algo. Meu deus, ele não pode me alcançar. Por favor, não o deixe me alcançar. Não posso me exaurir. Eu corro, corro, corro. Corro por uma rua que não conheço. Tenho medo de acabar num beco sem saída. Se aparecer um muro, um obstáculo qualquer, o que irá acontecer? Prefiro não saber. Melhor não pensar nisso. Ele, por outro lado, não parece cansar-se nunca. Ele anda e aparenta estar à mesma velocidade que eu, que estou no limite de minhas forças. Espere. Acho que há outros. Eu sei, sem espaço para dúvidas, que fiz algo hediondo. Por isso preciso continuar. Para que não me punam. Por que eu fui ser tão negligente? Serei objeto da vingança mais abjeta. Começo a me debater. Sei que padecerei dores pavorosas. Por que não consigo me lembrar do que ocorreu antes? Meus pés vacilam. Estou com medo. Não vejo saída alguma.

Escuridão.

Estou escalando uma montanha. Ao meu redor, enxergo inúmeros cumes altíssimos, todos encobertos de neve. Um senhor me diz, numa língua que compreeendo - embora nunca a tenha escutado antes - que estamos quase chegando. Faz muito frio. Sinto  a lufada de um vento cortante. Estamos, os dois, completamente agasalhados, salvo por parte do rosto, que assume um aspecto vermelho ardente. Descubro, sem a necessidade de qualquer espelho, que estou velho. O (outro) velho recorda que seremos os primeiros homens a chegar ao cume daquele monte. Estou na cordilheira de um país de nome impronunciável, cuja língua falo fluentemente. Apesar de não me lembrar, estou consciente de que estamos subindo gradualmente há várias semanas. Para evitar eventuais contratempos e garantir nossa sobrevivência em caso de emergência, estamos racionando água e comida. Nossas forças não chegam a uma fração do que tínhamos no início, após muito tempo de preparação. Então, como recompensa por todos os esforços, vejo que falta pouco. Nos elevamos um pouco mais, com a ajuda de cordas. Damos poucos passos e, finalmente, chegamos. Porém, ocorre algo inesperado, ao menos para mim. No topo daquela montanha, para minha surpresa, estão todos os meus amigos. Eles anunciam que estavam nos esperando há muito tempo, para comemorar aquela grande vitória. Afinal, sua vida de explorador do mundo adquiria um novo status, e ninguém poderia deixar-me sozinho em momento tão importante. Estão todos muito contentes. Diferente de mim, eles têm a mesma idade de sempre. Trouxeram bolo, bebidas, petiscos. Acho que é meu aniversário. Dão início à festa. Todos conversam com entusiasmo. Olho ao meu redor: a vista é maravilhosa.

Escuridão.

Ah, eu me lembro dela. Não me recordo, talvez, do início de tudo. Lembro-me, contudo, do rosto dela. Ela exibia um sorriso constante. Tinha o rosto gracioso. Parecia contente por algo que eu havia feito. Eu estava apaixonado. Era óbvio que ela também estava bastante apaixonada. Ela sorria agora bem perto de mim. Seus olhos sorriam, entrecerrados. O rosto todo dela, e o corpo, sorriam. Havíamos tido um passado feliz. Estávamos em um quarto. Talvez o meu, talvez o dela. Nesse quarto, isto era o mais importante, nos sentíamos em casa. Estávamos sentados na cama. A luz era cálida e esbatida. Havia alguns livros numa estante ao lado que eu conhecia, mas que não eram meus. Ou talvez fossem. Nós dois havíamos lido aquelas histórias, isto era certo. Escutávamos nossas músicas preferidas. Ah, eu me lembro. Era como se fosse agora. Ela me contava histórias divertidas do seu passado. Era uma pessoa boa. Eu podia sentir que ela era uma pessoa boa. Eu só havia desejado isto a vida toda: uma pessoa boa. E ela era. Tão simples. Embora fosse extraordinariamente interessante, exalava uma humildade única. Subitamente, eu desatava a chorar. Chorava com a história engraçada. Embora fosse paradoxal, ela imediatamente compreende. Eu estava feliz. Estou. Ela me deita, para que eu me acalme e pare de chorar. Pare de chorar. Você está feliz. Sim, eu estou. Você sabe. Eu sei. Deita. Obrigado. Por tudo. Ela passa a mão no meu cabelo. Seca minha pele úmida com um beijo. Em seguida, ela se deita comigo. Abro novamente meus olhos, e revejo seus olhos: abertos, atentos. Eu só via os seus grandes olhos. Ela, então, encosta-se completamente em mim. Seu corpo inteiro em mim. Descubro que estou sem roupa. Ela, igual, nua. Sinto somente, mais nada sinto além disso: sua pele inteira encostada no meu corpo. Esfregando-se em mim. Uma sensação boa. Ela fricciona sua pele à minha. Meu corpo inteiro estremece. Ela se aperta cada vez mais forte contra mim. Ah, eu me lembro. Eu me recordo como era dentro dela. Me lembro de nós dois colados. Aquela sensação causada pelo suor entre as epidermes. Meu corpo inteiro tenso. Tudo molhado de lágrimas e de suor. O quarto inteiro. Está chovendo dentro do quarto. Meia-luz. Ela se estremece. Ela continua. Nós estamos maravilhosamente encharcados. Dois minutos. Três minutos. Cinco dias. Não para. Não cessa. Seus olhos olham diretamente os meus. Tão perto. Eu sinto algo. Sinto que algo vai acontecer. Um sensação boa. Tento me controlar, mas é muito forte. Algo está acontecendo. Não vou conseguir segurar. Explodo. Seus olhos eram malícia em estado puro. Eu desmaio.

Escuridão.

Suspeito que aquele cômodo ficava na casa de minha avó na minha infância. Abro a porta e dou de cara com o corredor daquela velha casa em que meus pais me deixavam durante as férias. Saio procurando o pomar no quintal do fundo do lote. Fico com medo de passar mal por comer tantas goiabas, como havia feito em férias imemoriais. Minha avó reitera que eu não posso comer tantas goiabas. Ela me avisa vai fazer aquele biscoito de que gosto tanto. Guarde-se para os biscoitos, ela diz. Parece que ela, aquela garota daquele quarto úmido, não existe mais. Embora eu guarde ainda o gosto dela. Ou, talvez, ela ainda não existisse. Mas eu a procuro. Passo o dia procurando o meu futuro dentro de meu passado. Sinto que não adianta perguntar por ela. Ninguém entenderia. Subitamente, porém, naquela rua quente daquela pequena cidade do interior do país, eu a revejo (embora, de certo ponto de vista, eu estava vendo-a pela primeira vez). É uma criança, mas seus olhos a denunciam. Percebo que ela ainda não me conhece. Eu vou atrás dela. A mãe dela me vê e diz-lhe que eu quero brincar com ela. Ela brinca comigo. Nós aproveitamos grande parte da tarde, naquela idade em que uma tarde é quase uma eternidade. Em algum momento, todas as crianças que antes não estavam lá subitamente aparecem e formam uma roda para ver um menino que caiu e machucou o joelho no asfalto. Ela está bem à minha frente. Sem dar por mim, acaricio as costas dela. Ela vira, admirada, para mim. Eu faço um esforço para explicar que fiz aquilo sem querer, mas não consigo pronunciar uma palavra. Apenas a miro, boquiaberto, muito mais perplexo do que ela com minha atitude. Ela sorri e me beija no rosto. Eu começo a flutuar. Você me segura e me coloca de volta no chão. Ninguém percebe. Imediatamente, todos voltam a brincar. O menino com sangue no joelho se levanta. Fico olhando a marca vermelha no asfalto. De repente, meu pai, que estava de férias numa praia muito distante, inexplicavelmente aparece na minha frente e diz que é hora de voltar para a casa da minha avó. Ela – a garota do futuro - nem olha para trás enquanto eu me afasto. Digo a meu pai que vou me casar com ela. Ele gargalha. Admito que ele não pode não entender que eu a conheço de antes, do futuro. Porém, ele devia ter consciência disto. Ele é adulto. Ele devia saber de tudo. Minha avó havia preparado biscoitos muito saborosos. Minha avó faz muitas coisas gostosas. Fazia tempo que não comia aqueles biscoitos. Minha avó não sabe que está morta. Foi bom ver minha avó de novo.

Escuridão.

Tenho medo de morrer sozinho, caminhando por esta rua escura. Não há ninguém. Sinto que posso morrer. Sinto uma solidão enorme. Desconfio que não existe mais ninguém. Eu ando sozinho por uma rua que não acaba. Passo por quadras e mais quadras desoladas, edifícios muito altos e depredados, escolas abandonadas, hospitais vazios, jardins murchos. Somente alguns postes iluminam os espaços. Estou procurando alguém. Não sei precisar se alguém específico, ou se só um alguém qualquer. Acho que me sinto solitário nesta cidade arruinada. Seria bom encontrar alguém e perguntar porque não há mais ninguém. No entanto, ninguém aparece. Eu sigo caminhando.

Escuridão.

Surjo no meio de uma festa. O local está abarrotado de gente. Pessoas empurrando por todos os lados. Não sei com quem eu fui a esta festa. De repente, ela aparece. Acho que é a mesma garota molhada da chuva do quarto. Porém, com um aspecto físico diferente. No entanto, por alguns pequenos sinais perceptíveis somente para mim, concluo que é definitivamente a mesma garota. Tem outro corpo. Deduzo que estamos juntos há bastante tempo. Tenho a impressão de que moramos no mesmo apartamento. Ela decide sair do meio do turbilhão e me conduz a um lugar mais vazio. Acho que não estou apto a dizer nada porque a música está muito alta. Ela me conta que precisa conversar comigo. Eu não consigo pronunciar palavra. Eu não me sinto, não consigo me ver. Só ela existe ali. Não há mais ninguém na festa, a não ser uma pessoa, que nos observa à distância. Ela então me diz à queima-roupa que está ficando com aquele sujeito mais à frente. Que decidiu ficar com ele e separar-se definitivamente de mim. Que eu tenho que entender. Que está apaixonada por ele. Que ela não me ama. Talvez nunca tenha me amado. Ela diz que já não volta mais para casa. Ele a chama. Ela vai até lá. Ele diz-lhe algo ao pé do ouvido, e aproveita a ocasião para beijar-lhe levemente o lóbulo. Então, os dois se beijam na boca apaixonadamente. Na minha frente. À queima-roupa. Ela sussurra algo no ouvido dele. Depois, volta e me aconselha a ir embora para não ser ainda mais humilhado. Que ela vai ficar com ele na festa. Eu tenho vontade de lhe perguntar porque ela está fazendo isto comigo. Mas não consigo dizer nada. Ela vai embora. Ela o beija de novo. Nota que eu ainda estou por lá. Me dirige um olhar de desprezo. Ri com escárnio. Eu não sei para onde ir. Nem sei dizer exatamente onde moro. De repente, a festa está cheia de novo. Ela  me encara pela última vez e o beija de novo, nitidamente para que eu testemunhe aquilo, depois morre de rir de algo (de mim?) e some no meio da multidão.

Escuridão.

Desperto-me sobressaltado por uma série de visões bizarras que tive durante o sono. Decido contar a todos aquele sonho. Depois de escutarem atentamente, conhecidos meus explicam que minha narrativa não reflete exatamente o que sonhei. Eu tento argumentar que estou certo de que foi exatamente daquela maneira. Eles retrucam que, muito simplesmente, eu não havia entendido e que eu não me lembrava de algumas partes. Todos haviam assistido ao sonho e concordam que minha história não era fiel. Disseram que uma parte era formada por referências a uma infância que eu nunca havia vivido. Meu psicanalista expõe que está de acordo com todos eles. Sinto uma grande frustração. Todo mundo havia entendido meu sonho melhor do que eu. Vencido, sou obrigado a concordar. Embora aquela anuência implicasse admitir que o sonho não era exatamente do modo como eu rememorava. Mas todos estão tão seguros. Sinto que sempre compreendo menos do que deveria. Mas está tudo bem, dizem. Todos sorriem complacentemente. Não consigo entender. Contudo, fico contente por me esclarecerem exatamente o que eu sonhei. Eu não me recordo direito dos sonhos. Todos se lembram dos meus sonhos, menos eu.

Escuridão.

Estou caminhando pela calçada de uma nova rua. Uma garota desconhecida começa a puxar assunto a meu lado. Continuamos vagando pela cidade. Seguimos assim por alguns quarteirões. Depois de algum tempo, chegamos à porta do que suponho ser minha casa. Convido-a a entrar. Ela aceita. Entramos. A claridade do exterior é substituída por uma luz muito fraca. Depois de passar por alguns cômodos insuficientemente iluminados, descubro uma mulher reclinada no sofá da sala de televisão. Está usando aquela típica roupa usada que geralmente se usa dentro de casa. A mulher levanta-se. Dirige-se à visitante, apresenta-se e a recebe carinhosamente. Em seguida, me abraça e me dá um beijo. A característica mais marcante da moça do sofá é sua leveza, em todos os aspectos. Relembro-me do dia anterior, em que eu a tinha carregado com insólita facilidade pela casa inteira. Ela, por sua vez, toda enroscada em mim. Como estava antes retorcida no sofá, com sua roupa confortável, no momento em que eu havia chegado naquela (minha) casa. Ela gostava que eu a levasse para todo lugar, para ficar constantemente apoiada em mim. Parecia que ela até mesmo costumava dormir em meus braços durante essas perambulações. Após um tempo, ela tira um bebê de um berço onde ele dormia. Era uma menina de cerca de seis meses. Ela mostra sua filha à visitante. Enquanto isso, eu me deito no sofá, exatamente no mesmo lugar em que ela estava antes. Aquela área exalava o olor do perfume dela. Depois que a visitante a acaricia desajeitadamente, a mãe deita a menininha de bruços em cima de minha barriga, sobre a qual ela se aconchega ainda melhor do que no berço. Não sei se ela era minha filha. Mas sinto que pode ser ou que aquilo não é importante. Ela dorme silenciosamente sobre minha barriga. Parece que sou feliz. Não sei que fim leva a visitante. Sinto só uma harmonia enorme. Me sinto parte de uma espécie de sentimento comum.

Escuridão.

Acordo e procuro freneticamente o despertador. Levo um tempo para fazer as contas e compreender que não estou atrasado. Me levanto da cama e me dirijo ao banheiro. Enquanto escovo os dentes, pressinto que algo que está errado. Volto para verificar o relógio uma vez mais. Passaram-se várias horas. Como? Talvez eu não houvesse conferido o despertador direito da primeira vez. Termino de escovar os dentes e confiro novamente o mostrador do alarme. Realmente, havia perdido o horário. Saio de casa desesperado, em direção ao lugar onde estão sendo realizadas as provas que eu não poderia de maneira alguma perder. Uma vez lá, me explicam que eu também havia perdido os exames do dia anterior. Então, eu havia dormido dois dias? Infelizmente, parecia ser o caso. Agora, eu haveria de esperar o próximo ano e tentar de novo. A funcionária, desconcertada, tampouco pode compreender como eu poderia haver dormido por dois dias e sequer me dado conta do acontecido. Volto para casa desolado, ainda sem poder explicar aquelas circunstâncias.

Escuridão.

É de conhecimento universal que existe um botão vermelho que aciona o fim do mundo. Não estão muito claras as razões pelas quais ele foi concebido e (algo ainda mais misterioso) rigorosamente construído. Após certas deliberações, acordou-se que ele estaria a cargo de um órgão similar ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Tenho plena consciência deste fato quando sou abordado na rua por certo conhecido, que empunha um jornal e, aos brados, afirma que divergências entre os representantes daquele órgão poderiam levar a que alguém o acionasse. Nem dou ouvidos a tamanho absurdo. Não fazia sentido que uma organização internacional iniciasse o funcionamento de um mecanismo que levasse à nossa completa aniquilação. Contudo, alguns dias depois, novamente caminhando pela rua, avisto algumas manchetes em diversos jornais anunciando que o botão havia sido pressionado, por diferenças irreconciliáveis entre os diversos membros da comissão do fim do mundo. As ruas, apesar de tudo, continuavam apresentando seu aspecto cotidiano. Ninguém parecia estar especialmente nervoso. Eu compro o jornal com o revisteiro e procuro confirmar com ele se era verdade o que estava noticiado. Ele assente. Complementa depois que todos os jornais da televisão já haviam antecipado a notícia na noite anterior. Sua voz anuncia sua própria morte com grande tranquilidade. Não sei com quem conversar. Tudo segue seu curso, menos o meu coração. Não encontro ninguém conhecido. Sinto-me absolutamente perdido na rua durante o início do fim do mundo.

Escuridão.

Volto a ser perseguido. Continuo tentando correr. Não assimilo como posso correr tanto sem conseguir afastar-me de meu carrasco. Olho para ele e tento lembrar-me de onde o vi antes. Talvez seja aquela pessoa da festa. Ou talvez algum antigo amigo. Acho que aquela garota tem algo a ver com isso. Devo ter feito algo que a chateou. Eu já tinha visto que ela tinha pendor à vingança. Ou talvez seja o oposto. Talvez ele esteja furioso por ela estar comigo. Talvez ele fosse amante dela. Talvez ainda seja. Talvez eu seja o amante dela. E ele, o marido. Talvez eu a tenha roubado dele. Talvez ele não goste que eu siga existindo. Sinto que fiz algo muito errado do qual ele anseia se vingar. No meio da corrida, começo a sentir minhas pernas dormentes. Também o chão parece estar cada vez mais pegajoso. Dou passos cada vez mais curtos e mais lentos. Se seguir assim, ele vai me alcançar. Começo a fazer um esforço descomunal para correr, mas não consigo. Aparentemente, também vou chegando ao fim do caminho. Parece haver um penhasco poucos metros à frente. Pouco a pouco, algo irresistível me impede de seguir. Não consigo mais dar um passo. O homem furioso e seus companheiros se aproximam. Eu estou afundando na terra. Quando tudo indica que eu vá, na melhor das hipóteses, morrer com dores insuportáveis, quando estou no auge do despero, quando meu coração martela no peito enquanto vejo meus algozes se aproximando, quando estou suando aos borbotões e meus pés continuam anestesiados e afundando na terra, exatamente aí neste momento, enfim, tudo subitamente desaparece e aquele mundo é imediatamente substituído por outro.

Luz.
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segunda-feira, 25 de março de 2013

Um conto de faz de conta


Era uma vez um comboio que chegava a um lugar muito distante, um lugar diferente de todos os outros lugares que tinham existido. Aquele comboio aproximava-se lentamente de uma rampa que indicava o final do percurso da estrada de ferro. Os vagões do comboio eram destinados ao transporte de animais, mas estavam cheios, repletos mesmo, de pessoas. As pessoas eram bem magrinhas, tinham a pele bastante ressecada e pareciam exaustas.

A paisagem daquela terra era admirável. Parecia um reino encantado. Havia algumas construções de madeira espalhadas e, no centro, um edifício em alvenaria com uma grande chaminé. Seus arredores eram cobertos de vegetação natural. Era um campo típico de clima temperado, com suas árvores e caminhos forrados de pedras. Era uma noite de inverno e fazia muito frio. A temperatura era de 15 graus negativos. Nevava. Apesar do friagem, os anfitriões estavam todos do lado de fora, diligentemente preparados para a chegada daquele comboio. Diversos funcionários aguardavam junto ao trem a abertura das portas por onde sairiam as pessoas.

Então, enquanto a neve caía lentamente sobre os chapéus dos oficiais, as portas se abriram e os visitantes foram ordenados, aos gritos, a sair dos vagões. Para que não se demorassem, começaram a receber cassetadas na cabeça, nas costas, nas pernas. Logo saíram todos muito apressados, tentando desajeitadamente desviar-se das investidas, que pareciam vir de todos os lados. Os vagões, então, foram esvaziando-se. Algumas pessoas, todavia, permaneceram dentro do comboio, apesar do grande incentivo oferecido pelos golpes. Estavam prostradas pelo chão. Foram, então, retiradas pelos empregados e levadas para um canto.

Aqueles que estavam em fila foram instruídos a deixar seus pertences do lado direito. Uma montanha de malas, caixas, sacolas e outros objetos formou-se instantaneamente. Os oficiais explicaram que os artigos deveriam ser amontoados cuidadosamente, para que chegassem ilesos ao local onde todos estariam hospedados. E eles obedeceram. Depois, voltaram à fila, onde havia uma pessoa que inspecionava os recém-chegados. Era um médico. O doutor separava aqueles que estavam mais saudáveis e fortes daqueles que estavam menos saudáveis e fortes. Os primeiros eram instruídos a retirar-se da fila. A grande maioria seguia em frente.

Seguindo em frente, havia um barracão de madeira onde deveriam entrar as mulheres. Os homens eram orientados a rumar para o flanco exterior da construção. Todos os entes do gênero feminino, do lado de dentro, e todos os entes do gênero masculino, do lado de fora, eram orientados a tirar a roupa ali mesmo, apesar de não haver nenhum sistema de calefação.

Naquele momento, o medo começou a apoderar-se dos visitantes. Muitos começaram nervosamente a pedir explicações. Os empregados locais, porém, permaneciam impassíveis. Existiam muitos boatos, boatos terríveis, boatos inimagináveis, sobre o que acontecia com as pessoas que eram encaminhadas até o final das linhas de trem. E todos os homens e mulheres começaram a exasperar-se, a falar cada vez mais alto, até que a situação culminou em um alvoroço de gritos de desespero. Sem hesitar, os oficiais e seus auxiliares iniciaram um regime de pesados golpes e pontapés para convencer os mais indisciplinados. Mas eles permaneceram imóveis, petrificados. Redobraram-se, pois, os esforços de persuasão. Os gritos de dor confundiam-se com os gritos de desespero. Esta desordem deve ter perdurado por alguns minutos.

A neve do piso tinha adquirido uma coloração vermelho-escura quando surgiram os oficiais que dirigiam aquele empreendimento. Diante do caos que encontraram, pediram a todos que se posicionassem organizadamente para ouvir o que tinham a dizer. Mandaram os homens que estavam do lado de fora a entrar no barracão para ouvir o discurso. Quando já estavam todos reunidos, o Comandante, que tinha o aspecto de um príncipe em uniforme de gala, enunciou sua fala com a eloquência de um grande retórico:

- Sei que muitos de vocês fizeram uma viagem de dois a três dias continuamente em pé e que estão bastante cansados. Talvez, por isto, estejam com o pensamento confuso. Entendo que muitos estejam reclamando de sede, pois foi impossível oferecer-lhes água no caminho. No entanto, não consigo compreender os temores que alguns aqui possuem sobre como vamos tratá-los. Por isso, vim aqui esclarecer de uma vez por todas nosso cronograma. Como todos sabem, estamos em um momento muito aflitivo (não são só vocês que estão em dificuldades, nós também estamos). Por isso, absolutamente todos os recursos com que possamos contar serão apreciados. Esta é a razão de vocês terem sido transferidos para cá. Podem estar seguros disso. Tenho certeza de que todos aqui podem ser úteis. Vejamos. Você, por exemplo, na segunda fila, qual o seu ofício?

- Sou alfaiate, Senhor.

- Pois estão, precisamos de sua ajuda para confeccionar e reparar os uniformes de nossos soldados.

O alfaiate sorri, satisfeito. O Comandante continua sua inquirição:

- Você, de cabelo negro ao fundo, o que você faz?

- Sou enfermeira, Comandante.

- Pois você é mais necessária do que nunca. Necessária agora mesmo, para ajudar na recuperação dos incontáveis feridos e doentes, e para dar conforto aos que sofrem. – O Comandante passa os olhos pela multidão, aponta outro homem, baixo e de barba espessa, e pergunta: - E você, à direita?

- Eu era contador, Senhor.

- Pois você pode nos ajudar na organização deste campo. Precisamos de todos vocês. Peço que abandonem estes temores que não têm sentido algum. Reflitam melhor. Ainda que vocês suponham que não tenhamos nenhum apreço por vocês, por que não aproveitaríamos sua capacidade de trabalhar? Está na hora de parar de acreditar em contos de fadas, em estórias onde todos, reis e súditos, não passam necessidades. Aqui, no mundo real, as pessoas sofrem e necessitam de cuidados. Não podemos desperdiçar força de trabalho. E vocês estão chamados a participar destes esforços. Eu insisto: nosso tempo, de grandes necessidades, exige a participação de vocês, e não vamos deixar que ninguém se esquive de suas tarefas. Ao trabalho!

A enfermeira e o contador gracejam, confortados.

O Comandante acrescenta:

- Mais uma coisa: as crianças e idosos podem ficar sob a tutela de seus responsáveis. Agora, por favor, exijo a colaboração de vocês, ou serei obrigado a tomar medidas disciplinares.

Os avós, as mães e os filhos respiram aliviados.

O Comandante adverte, em seguida:

- Há uma grande epidemia de tifo. É bem provável que vocês tenham piolhos pela cabeça e pelo corpo, especialmente após esta viagem. Para evitar que se contaminem os demais ocupantes, que estão sadios, todos vocês precisam passar por um processo de desinfeccção. Somente assim poderão ser acomodados e iniciar o trabalho.

O Comandante faz um sinal para seus companheiros. Imediatamente, alguns sabonetes e toalhas são distribuídos aos presentes.

- Vocês terão que compartilhar os poucos recursos de que dispomos. Agora, repito: colaborem. Para que sigamos corretamente o procedimento e vocês possam tomar seus banhos, tirem a roupa imediatamente. Disponibilizamos água e café para vocês naquele barracão ali, após a área de limpeza. Vocês estão tornando tudo mais lento do que o previsto e vão ter que, lamentavelmente, tomar seu café frio.

Todos começam a despir-se. Os mais fortes ajudam as crianças e os idosos a despojar-se de suas roupas. As pessoas, agora nuas, tiritam de frio (a temperatura agora havia baixado para 17 graus negativos com o avançar da madrugada). As roupas se acumularam em um canto da área de recepção e foram retiradas pelos funcionários. O Comandante agradece:

- Agora, sim. Apressem-se para tomar o café. Acabam de avisar-me que os galões de água foram reabastecidos. Vocês serão agora escoltados para a área de desinfecção.

Os homens e mulheres são conduzidos à área de limpeza. Há placas indicando banheiros. Há sinais com instruções sobre como limpar-se devidamente. Advertências sobre o perigo de contaminação por terríveis moléstias. Algumas cadeiras também são disponibilizadas para descansar enquanto os empregados terminam de limpar o banheiro. Depois de alguns minutos, todos são orientados a entrar pela porta de metal. As pessoas vão ocupando o cômodo, preenchido por diversas duchas. Com o fim de economizar tempo e recursos, é preciso sempre lotar a câmara para que todos os presentes passem pelo processo ao mesmo tempo. 

 Já dentro das câmaras, entram novos servidores locais para aparar os longos fios de cabelo de parte dos visitantes, especialmente das mulheres. Explicam que aquilo faz parte do trâmite de eliminação dos piolhos. Algumas mulheres, muito apegadas a suas madeixas, assentem com lágrimas nos olhos. Todos temem destacarem-se, de alguma maneira, por uma particular falta de asseio. Os cabeleireiros recolhem rapidamente as mechas que se espalharam pelo piso e abandonam a sala.

Os funcionários que os haviam escoltado à câmara diligentemente fecham a porta de metal antes de iniciar o processo de desinfecção. Naquele momento, era perceptível o absoluto silêncio dentro da câmara em que estavam trancados. Todos olharam para cima, esperando que a água começasse a correr pelas chuveiros logo acima de suas cabeças.

Subitamente, todas as luzes são apagadas. Naquele breu abrupto, começam a ser escutados gritos de terror, cada vez mais altos. Ouve-se, então, alguns ruídos de latas batendo no chão, que indicam o início do procedimento anunciado. As pessoas começam a debater-se umas contra as outras no escuro, em desespero. Algumas começam a pedir ajuda. Os gritos aumentam. Havia um grande tumulto de ruídos de corpos contra o chão. Os gritos aumentam ainda mais. Alguns, porém, são abafados.  Depois, começam a diminuir. O barulho reduz-se cada vez mais, até cessar completamente.

Então, depois de cerca de vinte minutos de imenso alvoroço, as pessoas sossegam completamente. Uma serena paz finalmente voltava a governar aquele lugar, um lugar diferente de todos os outros, que mais parecia um reino encantado. Todos os funcionários aguardavam em seus lugares a retirada dos calmos visitantes. Suas atribulações estavam finalmente extintas. Todos estavam sossegados. Eles seriam dirigidos em seguida para um local muito mais aquecido, para descansar em companhia dos visitantes que haviam chegado antes e dos que chegariam depois.   

E foram felizes para sempre.


                                                             Fim

sexta-feira, 15 de março de 2013

O Grande Líder



Em estado de total imobilidade, cinco homens em terno e gravata estão postados ao redor do cadáver de uma mulher luxuosamente vestida. Sua pele pálida contrasta vivamente com seu vestido cor de púrpura. Os traços finos, intactos, marcam a beleza de uma pessoa muito jovem, ainda que morta. Seu vestido harmoniza-se perfeitamente com a suntuosidade da sala. O ambiente é todo iluminado por um grande lustre de cristais italianos azuis e brancos, que transmitia seus tons ao piso em jacarandá forrado com tapetes persas e às paredes em estilo francês cobertas parcialmente por tapeçarias exóticas. O cômodo é conhecido como Salão Azul do Palácio da Nação.

O mais alto dos presentes, o Grande Líder, faz um sinal e três deles se retiram. Durante alguns minutos, o Grande Líder fita intensamente o corpo de sua falecida esposa como que para ordená-la que se levantasse. O Correligionário, então, após limpar a garganta, toma a palavra:

- Peço perdão pela insistência, Grande Líder, mas o Povo espera sua decisão a respeito das cerimônias fúnebres. Há uma multidão fora do Palácio ansiosa pela oportunidade de despedir-se de Nossa Guia.

O Grande Líder senta-se em uma das poltronas próximas ao ataúde. Permanece calado. Levanta-se novamente e olha para seu assessor:

- O Povo sofre, eu sei, mas eu também sofro. Testemunhei de perto a deterioração do estado de saúde da minha esposa, tão nova, tão jovem, recusando-me a acreditar que uma enfermidade que parecia de início uma febre pudesse chegar ao que agora é irremediável. Ela era 15 anos mais jovem do que eu. Há apenas seis meses, eu pensava que o amor que do Povo por ela era tão intenso que ela seria minha sucessora. Deus sabe o quanto ela amava o Povo de volta. Quantas vezes, desafiando ordens médicas, ela não se postou na janela do hospital para saudá-los e acalmá-los. Eu sempre lhe propunha ir em seu lugar para oferecer-lhes uma palavra de alento, mas ela insistia que ela própria deveria fazê-lo, por consideração a eles. Eu, desgraçadamente, por amor a ela, assentia. Até o dia em que ela não pôde mais levantar-se, e perdesse a razão, depois os sentidos, até expirar na cama ao lado da qual estava sentado há dois dias. Apesar de não entender até hoje por que levaram-na tão cedo, de não aceitar o que me parece ainda uma injustiça, de não compreender nada dos desígnios divinos, tenho agora que tomar uma decisão imediata sobre sua despedida. Não obstante o farei, uma vez mais, em nome de meu amor por ela e do amor dela pelo Povo.

O Correligionário assiste com pesar a exposição do Grande Líder. Junta suas mãos à frente da cintura, depois atrás das costas, exasperadamente. Quando concluída a fala, olha mudo para o assoalho. O Grande Líder continua:

- Você está somente fazendo o seu trabalho. Não tem que ouvir lamúrias minhas. Desejo apenas ter mais algumas horas a sós com ela. Quero velá-la esta noite. O Povo compreenderá. Faça todos saberem que o corpo dela poderá ser visitado a partir de amanhã, por três dias, após os quais será realizado seu enterro, segundo as formalidades do protocolo oficial.

Mesmo após assegurar-se de que o Grande Líder havia terminado, o Correligionário ainda hesitou por alguns segundos. Em seguida, limpou novamente a garganta e balbuciou:

- Senhor, há rumores, rumores que provavelmente indicam um anseio do Povo, de que o Grande Líder mandará embalsamar o corpo de Nossa Guia para que possa visitá-la em momentos de grande nostalgia ou de sérias incertezas sobre sobre o destino da Nação. Ainda segundo estas esperanças, Nossa Guia jazeria no Salão Adjunto do Palácio da Nação, para permitir o acesso de visitas e, sempre que o Senhor julgasse conveniente, ele seria reservado exclusivamente para Vossa Excelência.

- Estou ciente destes murmúrios. Não é a primeira vez que me informam sobre este ruído incessante. Nem mesmo é a primeira vez que você me traz este assunto. Sou obrigado a concluir que nesta obstinação está subentendido um conselho: Vossas Senhorias pensam que seria mais conveniente mandar embalsamar o corpo de minha mulher. Muito bem. Pois eu lhe convido a contemplar o cadáver dela. Ela está ainda mais bela, depois de ser cuidadosamente maquiada e vestida por ordens de vocês, do que momentos antes de falecer, quando seu organismo ainda resistia, quando respirava com dificuldade, quando gemia de dor, quando ainda tinha o rosto todo crispado pelo sofrimento. Olhe para ela. Eu te asseguro: ela não possui agora sequer a metade da beleza que tinha antes de eu descobrir que andava ocultando os sintomas daquela moléstia. Olhe para ela, eu te ordeno. O Povo irá adorá-la ainda mais depois de conferir a sua beleza insuportável, que não passa de um sopro da era quando eu a conheci. Sua beleza só podia ser comparada à sua generosidade. Ninguém tem mais consciência da perda que todos sofremos do que eu. E é justamente esta consciência que me impele a dizer que, apesar da aflição que inunda meu coração, é preciso esquecer para seguir em frente. Se o corpo de minha mulher seguir indefinidamente em exibição no prédio vizinho, de onde tirarei forças para liderar o Povo, consciente do vazio de minha vida sem ela? Não. Por mais que eu me martirize agora, evitando o contato com quem mais amei nesta vida, creio que somente a aceitação desta perda me permitirá seguir vivendo neste mundo da qual ela se ausentou tão prematuramente. Minha decisão, portanto, está tomada.

O Correligionário pede permissão para retirar-se do cômodo. O Grande Líder assente e dá-lhe as costas para novamente fitar o corpo iluminado e imóvel de sua consorte.

*

Após o encerramento de uma reunião ministerial, o Grande Líder regressa a seu gabinete, acompanhado do Correligionário. Assina alguns papeis que este lhe entrega enquanto vai também tomando nota de alguns assuntos pendentes mencionados há pouco. O Grande Líder percebe que o Correligionário tem um ar apreensivo. Apanha uma pasta e pergunta:

- Algo lhe preocupa, meu caro?

- Senhor, por dever de ofício e pela confiança em mim depositada, sinto-me na obrigação de informá-lo sobre algumas inquietações que pairam no espírito do Povo. Já faz algum tempo que passaram a comentar sobre sua proximidade cada vez maior com a Secretária de Assuntos Privados.

- Você se refere à Martha?

- Receio que sim. Circulam fotos do Senhor sorrindo para ela após o café da manhã oficial com o Líder do País Vizinho, correm testemunhos sobre caminhadas pelo jardim da Residência Oficial, e crescem agora boatos sobre a presença dela no Retiro da Nação durante as férias do Senhor.

- Não tinha conhecimento de que o Povo estava tão preocupado com minhas amizades.

- Na verdade, os rumores são de que sua relação com a Secretária de Assuntos Privados ultrapassa os limites de uma mera amizade. Alguns consideram até que o Senhor estaria apaixonado por ela. Eu próprio - e peço antecipadamente perdão se estiver cometendo alguma indiscrição – reparei que o Senhor tem passado mais tempo com a Secretária, e que ultimamente o Senhor tem andado menos sério, mais sorridente. Ouso dizer, se o Senhor não considera meu comentário inoportuno, até mesmo mais jovial. Tendo em conta sua alta exposição pública, suponho que estas mudanças sejam perceptíveis até mesmo para pessoas de fora do círculo mais íntimo do Senhor. Senhor, insisto que eu não quero intrometer-me em seus assuntos privados. Minha intenção é apenas informá-lo sobre quaisquer desdobramentos políticos e sociais que possam ocorrer.

- Entendo. E quais seriam, então, seus pensamentos sobre o assunto? O Senhor acha que eu tenho o direito de me apaixonar, caso estas suposições estejam corretas?

- Desculpe-me... Quer dizer, o Senhor, claro que... Todos têm direito a sua vida privada.... Bem, todo mundo tem o direito de se apaixonar. É impossível dominar completamente as paixões. É algo humano. Ultrapassa a mera vontade.

O Correligionário toma um momento para refletir. Depois, limpa a garganta e avança:

- Muitos filósofos, no entanto, nos aconselham a refletir antes de deixar-nos dominar pelas paixões. Mas o Senhor, nosso Grande Líder de nossa grande Nação, certamente possui a sabedoria necessária para ponderar sobre esta questão. Meus pensamentos poderiam parecer-lhe muito simplórios.

- Caro Correligionário, peço-lhe humildemente que seja sincero comigo. O Senhor estava do meu lado durante o funeral da minha esposa, há nove anos. Desde então, acompanhou-me em quase todas as minhas atividades oficiais. Trocamos impressões sobre inumeráveis assuntos, inclusive pessoais. O que o Senhor pensa sobre a possibilidade do Grande Viúvo da Nação apaixonar-se quase dez anos depois da morte de sua esposa? O Senhor acha que eu estaria traindo a memória dela?  

- Não, claro que não, Senhor. Quer dizer que o Senhor confirma que está apaixonado? Perdão pela intromissão. Não me concerne, não me concerne em absoluto. Senhor, eu me preocupo com as reações do Povo a esta notícia, caso haja mesmo uma notícia. Enfim, o Senhor compreende que, depois que o corpo de sua esposa foi embalsamado e passou a ser exibido no Salão Adjunto do Palácio da Nação, a adoração a ela aumentou extraordinariamente. Nunca esteve, aliás, tão forte. Tivemos que mudar todo o esquema de segurança para permitir que uma multidão crescente entre diariamente para contemplá-la, reverenciá-la e até mesmo chorar e suplicar diante dela. O Senhor tem acompanhado o alvoroço em torno dos rumores sobre o atendimento de orações e a realização de milagres. O Povo agora divide-se entre as designações Nossa Guia, Santa Guia e Santa do Povo. Ademais, depois que ela faleceu, tornaram-se célebres várias imagens do Senhor chorando diante de seu mausoléu. O Povo passou a admirá-lo também por sua devoção e por sua lealdade a ela. Todos sabem o quanto o Senhor padeceu pela morte dela.

- E o Povo acha que eu devo seguir de luto? Seguir padecendo? 

- Eu acho que, diante destas circunstâncias, o Povo poderia ter dificuldades de conceber que o Senhor possa amar alguém de novo. Quer dizer, se o Senhor amou a Nossa Guia, idolatrada como nunca pelo Povo, porque trocaria a memória dela por uma relação com outra pessoa? O Povo pode ter dificuldades para assimilar. Pode ter interpretações equivocadas. Minha avaliação é a de algo desta natureza poderia colocar em risco as conquistas alcançadas até o momento e as esperanças depositadas no Senhor durante todo este tempo. Poderia haver algum tipo de comoção pública ou até mesmo casos de violência.

- Obrigado por suas importantes palavras, Correligionário. Após ouvi-las, estou convencido de que você se equivoca ao considerar-me um sábio. Não havia considerado nada do que você agora me revela.

- Peço desculpas por ter ultrapassado minha competência, Senhor. No entanto, peço sua permissão para fazer uma última ponderação. Independentemente da decisão que o Senhor tomar, cabe considerar desde logo a segurança da Secretária de Assuntos Privados. Desde o início destas especulações, as opiniões do Povo sobre ela estão cada dia mais severas. Muitos reclamam, quando pouco, sua demissão do cargo. Julgo que, persistindo estas insinuações, será necessário  armar um esquema de segurança para ela.

- Vou refletir sobre suas observações. Agradeço-lhe a sinceridade.

*

Ao redor da cama do Grande Líder encontram-se o Médico Oficial, o Correligionário e o Secretário de Assuntos Privados. O Grande Líder pede que o Secretário tome nota de tudo. Dirige-se então ao Correligionário - agora conhecido como Novo Líder da Nação – para mencionar importantes decisões sobre assuntos de Estado. Em seguida, o Grande Líder, com olhos trêmulos, dá suas últimas instruções:

- Eu quero ser enterrado após a minha morte. Não quero que meu corpo seja embalsamado para ficar exposto em algum prédio público. Tenho, além disso, outro pedido. Rogo encarecidamente que retirem o corpo embalsamado de minha esposa do Salão Adjunto para que eu seja sepultado ao lado dela. Ainda poderão peregrinar para vê-la, apenas deverão dirigir-se a partir de agora ao seu túmulo. Mas eu suplico: por favor, nos deixem descansar em paz. Diga ao Povo que o espírito dela e o meu estarão sempre com eles. Prometa-me que fará isso.

Dois dias depois, o Novo Líder anuncia ao Povo os desígnios do Grande Líder.

O enterro do Grande Líder acontece quatro dias depois e é acompanhado por uma multidão inédita na história desta grande Nação. A cerimônia conta com todas as homenagens dignas de um grande herói. Incontáveis cidadãos optam por assistir ao Ato Oficial ao lado do Salão Adjunto do Palácio da Nação, pois havia rumores – que todos queriam conferir de perto - de que os olhos embalsamados de Nossa Guia poderiam derramar lágrimas em razão de sua morte.

Após a cerimônia, o turbilhão de gente foi pouco a pouco deixando o Cemitério dos Patronos da Nação. O ruído cada vez mais distante dos passos foi sendo substituído pelo silêncio ao redor de seu túmulo. O Grande Líder, porém, não descansa sozinho. O Grande Líder está no coração do Povo.